Falar do Belcanto é quase que falar da história da restauração em Lisboa. Muito antes de ser o restaurante de excelência que é hoje em dia, já na década de sessenta tinha conquistado as elites Lisboetas. Aberto desde 1958, foi em 2012 que José Avillez tomou rédea de um Belcanto totalmente renovado. Neste mesmo ano o restaurante foi distinguido com uma estrela Michelin, sendo que em 2014 chegou a segunda estrela. O Belcanto foi o primeiro restaurante na nossa cidade com esta distinção e José Avillez o primeiro Chef português também duplamente estrelado em Portugal. Já no ano de 2019 o Belcanto passou a ocupar a 42ª posição no afamado guia "The World's 50 Best Restaurants", posição esta que apenas foi confirmada no ano passado devido a toda a questão pandémica. Também em 2019 e sempre num processo evolutivo, o Belcanto mudou-se para um novo espaço mais amplo, contiguo ao inicial, apresentando agora uma maior proximidade entre a cozinha e a sala, o que enriquece a experiência gastronómica e sensorial de todos os que o visitam.
Espaço amplo que mantêm a traça original e que nos deslumbra pela simplicidade e elegância envolvente. Mesas largas com toalhas brancas como manda a regra. Cadeiras robustas que nos confortam e uma equipa jovem com um enorme sorriso de alegria por nos receber. Espelhos pelas paredes de pedra, chão de madeira e uma enorme cortina em tecido completam a sala, onde a cozinha é a atração principal. De uma lado para o outro como se de uma coreografia se tratasse, os diversos intervenientes vão acertando os pratos antes que a sala os leve até às mesas. Sem falhas, sem hesitações, tudo perfeito. Em frente à cozinha, uma mesa que senta 6 a 8 pessoas serve como primeira fila a todo este espetáculo.
A equipa, essa dispensa apresentações. Juntos são sempre mais fortes mas individualmente todos eles já foram diversas vezes premiados. José Avillez é o "nome" e a genialidade; David Jesus é quem coordena, executa e leva a equipa a bom porto. Nádia Desidério é quem nos mete o vinho na mesa, com uma garrafeira invejável e um conhecimento único; e Américo dos Santos é aquele que nos adoça o palato para um final de refeição em beleza. Mas já que falamos em refeição, passemos à mesa.
Belcanto, Evolução e Mesa do Chef são os 3 menus propostos. Cada um deles com o seu respetivo pairing. No Belcanto, viajamos entre a identidade e a tradição num compromisso entre a herança e a modernidade. Estão nele os pratos que espelham as transformações do Belcanto e de Lisboa ao longo dos tempos. No Evolução sente-se a transformação do ir mais além, da superação e do chegar ao pretendido. Porque nunca se contentam com o que já existe e porque gostam de arriscar, pegaram em pratos icónicos já existentes e decidiram reinventá-los. Novos sabores, novas texturas, ideias e sensações. No Mesa do Chef vamos às cegas e ficamos totalmente na mão da cozinha, que nos vai servindo prato a prato um menu surpresa de degustação, acompanhado por uma seleção muito especial de vinhos sugeridos pela Nádia.
Começamos a refeição como manda a regra. A escolha do menu recaiu no Evolução pois também gostamos de arriscar e ver onde é o mais além. O aperitivo é servido e ao copo chega um Andresen Porto Dry White. Aveludado na boca e com uma acidez perfeita é sempre uma excelente escolha para nos abrir o palato. Os snacks começam a ser servidos e a abrir as hostilidades chega à mesa o sabutini, um cocktail que interpreta um dry martini mas com um toque mais floral da flor de sabugueiro e também com raspas e espuma de limão para uma sensação mais cítrica, bem como um pouco de sal de paprika para equilibrar aromas. Para trincar, veio um pequeno brioche de manteiga de sementes de girassol, recheado com carabineiro e com um pouco de caviar no topo. Tão bom que sabe sempre a pouco.
Depois de um duo de snacks, chega um trio de snacks. Numa telha, um picadinho de lula em pele de frango assado e creme de gema de ovo. Numa pequena taça um tártaro de atum com borragem e numa colher uma esfera com foie gras e vinho do Porto. Texturas e sabores distintos num trio que se recomenda comer por esta ordem. O crocante da pele de frango cheio de sabor e que se come de uma só vez. O tártaro refrescante e equilibrado e a esfera de foies gras que nos preenche a boca com a gordura e untuosidade esperada. No copo, Nádia serviu um Arinto dos Açores do Pico 2020 cheio de pujança e acidez que acompanhou na plenitude este trio.
Snacks servidos, dois dedos de conversa trocados e a primeira entrada está pronta a ser servida. Cenoura e azeitona em diferentes texturas, com leite de pinhão e "caviar" de tremoço. Como se de uma típica salada de cenoura algarvia se tratasse o sabor aqui melhora a cada colherada dada. Cenoura em gel, em puré, em pickle e apenas cozida. A falsa azeitona também está presente para um splash na nossa boca, tudo isto regado com leite de pinhão e envolvido pelo tremoço que nos dá um sabor mais frutado e envolvente. O truque é mesmo tentar apanhar o máximo de elementos que conseguirmos numa só colher, levar À boca, fechar os olhos e deixarmo-nos levar.
O pão vem à mesa. Num tabuleiro de madeira quatro tipos diferentes de pão. Pão escuro, pão claro, broa e um caracol de azeitona. Tudo feito no restaurante, tudo de fermentação lenta e massa mãe. Difícil mesmo é escolher mas em caso de dúvida façam como nós, peçam um pouco de cada. Para acompanhar três manteigas caseiras, uma de vaca, uma de tomate e farinheira e outra de cinzas de alecrim. Cada uma recomendada para um dos tipos de pão diferente mas sintam-se livres para fazerem a vossa combinação favorita.
A conversa ia fluindo entre o barrar das manteigas e nem se dá pelo tempo passar. Entre opiniões sobre qual a melhor combinação e gargalhadas proporcionadas pelo mesmo, a equipa apresenta a entrada seguinte. Um “clássico” reinterpretado da melhor maneira possível. “Salada César” de lavagante com abacate, água de tomate, emulsão de yuzu e trufa. Saladas assim comiam-se todos os dias, onde o produto é o mais importante e um elegante lombo de lavagante, crocante q.b. é envolto com texturas de abacate e regado com a água de tomate cheia de sabor. Frescura, textura e acidez num prato que ainda foi acompanhado pelo incrível Arinto dos Açores do Pico que Nádia serviu anteriormente.
Mesa levantada, copo trocado e sabemos que a coisa vai ficar ainda mais complexa quando Nádia vem à mesa com um Luís Pato Vinhas Velhas Branco de 1999. A cor e os aromas de um branco cheio de estrutura e envelhecido pelo tempo foram apenas o aperitivo para um dos melhores pratos da refeição. No prato, uma gema cozinhada a baixa temperatura, enguia fumada, cabidela vegetal e “cinzas” de trufa. Todos os sabores a terra, a fumo e a gulodice de uma gema perfeita que se deixou explodir no prato e banhar todos os outros elementos para que a experiência fosse perfeita. A cada garfada uma nova descoberta.
Com muita base no mar, cada vez mais os restaurantes estrelados focam os seus menus na sazonalidade e sustentabilidade, utilizando proteína marítima, mas sempre com a qualidade e o luxo esperado. Depois de um prato que nos arrebatou por completo, seguiu-se outro cheio de sabor e que ainda hoje nos está no palato e na memória. Caril de carabineiro, maçã e hibisco. Levemente passado na chapa o carabineiro vem rosado e tenro. As cabeças incorporam o leve, mas cheio de aromas e saboroso caril. A maçã, cortada como se de um fettuccine se tratasse, traz um pouco de frescura e crocante extra a um prato de excelência e que facilmente se repetiria dentro do mesmo menu.
O prato seguinte trouxe-nos o desafio da refeição. Pescada de coentrada com as suas línguas. Apesar de não ser o peixe mais nobre, nada bate uma boa pescada devidamente cozinhada e num restaurante deste nível, se nos servem pescada, certamente é servida com a excelência esperada. Cozedura no ponto, textura incrível e a língua no topo do lombo, apresentou uma untuosidade extra e inesperada, que apesar de nos desafiar o palato e dentição devido à sua textura mais gelatinosa, acrescenta um sabor desafiante que nos deixou confortáveis. O molho, esse além de banhar a pescada, terminou ainda nos pedaços de pão que ainda estavam na mesa. No copo, um vinho "da casa". José Avillez/Niepoort Branco, Douro, 2018 que casou maridou na perfeição com todos os outros aromas.
A refeição ia longa mas estava na altura da carne chegar à mesa. Leitão em todo o seu esplendor. A crocância da pele sobre a tenra carne, o coração de alface , a laranja em gel, as batatas fritas em soufllé e o molho de pimenta servido na quantidade certa e já na mesa, fazem desta interpretação um prato leve e que culmina da melhor maneira possível o serviço dos pratos salgados. No copo, Nádia serviu um Monte Cascas Ramisco Colares Tinto de 2012 cujo pairing por norma não é fácil mas que aqui foi inevitavelmente perfeito.
Uma leve pausa apenas para se poder levantar a mesa. Despida na totalidade das loiças e apenas com a sua toalha branca posta, o staff chega com uma manga de camisa branca que nos pede para colocar num dos braços e recolhe-nos o guardanapo para se certificarem que não o iremos usar. Em vez disso, sempre que precisarmos de nos limpar, limpamo-nos à manga.
A primeira sobremesa chega em forma de “toucinhos-do-céu” e da terra com granizado de leite de tigre. Doçura e acidez em contraste e molho suficiente para garantir que nos teremos de limpar. E que bem que nos soube sujar a manga. No copo, já tínhamos um Aneto Colheita Tardia de 2019, que apesar de não ser a nossa praia, surpreendeu pelo seu cítrico em vez do habitual doce que estes vinhos apresentam. Por último, mas sem ser o fim, uma tarte de maça e ruibarbo a fazer lembrar aquelas que se vêm na TV, mas que não conseguimos provar.
Com conta, peso e medida, os cafés e petits fours são servidos mas nada de exageros. Dois mini "ferrero rocher" caseiros que fazem os da marca passarem vergonhas e que se comem apenas numa dentada.
O que difere então uma refeição de duas estrelas numa equipa bem formada e que ruma todo no mesmo caminho, para um restaurante de uma estrela? Acima de tudo a consistência. Enquanto em algumas experiências que fazemos percebemos que existem altos e baixos, o que também faz parte e nunca comprometeu a refeição, no Belcanto a experiência começa de modo excelente e termina em excelência. Não se vêm erros, não se vêm falhas e este nível não está mesmo ao alcance de todos.
Os menus do Belcanto têm preços distintos sendo que o menu Belcanto tem um valor de 175€ por pessoa, o menu Evolução tem o valor de 195€ por pessoa e o menu Mesa do Chef tem o valor de 250€. Já os pairings de vinhos sugeridos têm os valores de 95€, 135€ e 150€ respetivamente. Não sendo de todo um restaurante de dia-a-dia, é sem dúvida um restaurante que vale cada euro e que todos deviam de experimentar pelo menos uma vez. Podem e devem fazer as vossas reservas, até porque a espera para os jantares costuma ser longa e aos almoços nem sempre é fácil. As mesmas devem ser feitas aqui, ou pelo número 213 420 607.
Bom apetite.