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Conversas sobre o Vinho - Tiago Martins.

Tenho em mim todos os sonhos do mundo. O breve excerto de uma das frases mais conhecidas de Fernando Pessoa pode muito bem resumir a até agora curta biografia de Tiago Martins. Jornalista de formação e pós-graduado em Ciência Política, foi à arte do bem comer e bem beber que Tiago Martins decidiu dedicar a sua atenção. Primeiro como repórter e entrevistador, depois como vendedor de vinhos e, finalmente, como empregado de mesa.

Créditos fotográficos de Carlos Vieira_PLANO

Hoje, com 29 anos, é chefe de sala e escanção do restaurante PLANO, do chef Vítor Adão, na Graça, onde procura servir sorrisos e boas memórias a todos os seus clientes. Especialidades que seguem acompanhadas de bom vinho, que apresenta com uma colocada voz de quem já fez rádio e televisão, e de pequenas histórias que aprendeu a contar nos poucos mas lucrativos anos em que se dedicou ao teatro. Só sabe que nada sabe, ou não fosse ele um sommelier sem formação oficial, acreditando, porém, que todos os dias são bons dias para aprender e descobrir mais sobre a alegria de beber e partilhar bom vinho. 


1 – Começamos pelo óbvio. Para ti o que é um sommelier / escanção e qual a sua principal função nos dias de hoje? 

- Quando vamos a um bom restaurante queremos poder confiar na mestria e na dedicação que o chef de cozinha entrega aos seus pratos. Poder comer de boca e coração abertos, certos de que quem está ao fogão está só preocupado com a excelência daquilo que nos serve. Da mesma forma, vejo o escanção como o responsável por trazer essa mesma excelência aos copos, como alguém que procura o vinho perfeito para aquele prato e para aquele momento e, até, para aquele cliente. 

2 – O que te fez apaixonar por este vasto mundo dos vinhos? 

- Continuo ainda hoje a apaixonar-me. Gosto de pensar que o mundo dos vinhos é ele mesmo como um bom vinho: capaz de nos prender ao primeiro travo, de nos surpreender à medida que vai abrindo e se dando a conhecer, e provocante o suficiente para ficar indefinidamente nas nossas vidas (e nas nossas garrafeiras) após mostrar tudo aquilo que tem e de que é capaz. E o melhor é que todos os dias há novos vinhos para provar e vinho para conhecer e que mesmo os vinhos que conhecemos, em diferentes alturas, podem continuar a surpreender-nos. 

3 – Eça de Queiroz uma vez disse: “diz-me o que comes, dir-te-ei quem és. Achas fútil ou pretensioso definir uma pessoa não pelo que ela come, mas sim pelo vinho que ela bebe? 

- Não acho nada pretensioso. São escolhas. Cada um é livre de beber aquilo que quiser, quando quiser, ao preço que quiser. Só não obrigue ninguém a acompanhar. Saibamos, como bons portugueses que somos, fazer o que realmente interessa quando nos juntamos à volta de uma mesa: discutir sobre comida e sobre vinho. Falar sobre o que gostamos e o que não gostamos. E saber não ter medo de provar algo diferente, mais caro (ou mais barato!), de regiões não tão badaladas ou de países que não o nosso. O vinho que bebemos não nos define, mas a incapacidade de provar algo desconhecido por medo ou teimosia determina que vamos ter sempre refeições enfadonhas e perder uma parte deliciosa da vida, que é surpreendermo-nos. 


4 – Vamos fazer um jogo. Em vez de propores o wine pairing perfeito para uma refeição, pensa nos vinhos que mais gostas e que primeiro te vêm à memória para harmonizar os seguintes pratos: moelas estufadas, caldeirada de raia e tarte de lima. 

- A pergunta vem em mau momento porque preciso de me concentrar e agora deu-me a fome. Ainda assim, e tentando ser o mais objetivo possível, eu diria que umas moelas estufadas namorariam perfeitamente com um espumante Hibernus Premier, da Beira Atlântica, a caldeirada de raia eu acompanharia de sorriso no rosto com o branco biológico de 2018 do Esporão e a tarte de lima ia de estaca com o moscatel roxo da Brejinho da Costa. A sério. Ao ponto de ir experimentar tudo na próxima folga. 

5 – Com tantas castas existentes não só em Portugal mas também pelo mundo fora, para ti qual a que melhor se define como monocasta e qual o blend mais consensual ao palato dos portugueses? 

- Como português, não posso nunca ignorar a Touriga Nacional. Contudo, recomendo cada vez mais que se beba muito criteriosamente. Temos imensos monocastas de Touriga Nacional que não expressam nem de perto nem de longe a inigualável capacidade que esta nossa casta tem de acompanhar o melhor da nossa cozinha. Ou seja, quando descobrimos um bom Touriga Nacional devemos agarrá-lo até ao final dos nossos dias. Outro monocasta que adoro e que penso que reproduz um pedaço de terroir muito nosso é a Encruzado, do Dão. É difícil de domar, até de casar, mas é a expressão perfeita da bestialidade da natureza e da simultânea elegância que tem para nos oferecer. No que às blend diz respeito, somos dos países mais capazes de as concretizar. Talvez por termos um passado pautado por algumas limitações económicas (“vamos misturar isto tudo com amor e ver no que dá, até porque há pouca vinha para muito mais”), mas também porque temos tantas castas e tanta casta de qualidade que fica difícil cingirmo-nos a um gosto, perfil ou dimensão só. Se, por um lado, muitas vezes nos vimos “obrigados” a improvisar com o que tínhamos, por outro, desenvolvemos o gosto e a capacidade de trazer multipluralidade para os nossos vinhos. Até porque multipluralidade é coisa que não falta à nossa gastronomia. A ter de escolher - o que é erróneo -, gosto, nos brancos, da mistura Bical e Cercial, e Arinto e Chardonnay, e, nos tintos, da Touriga Nacional, Jaen e Alfrocheiro. 

6 – Cada vez mais aparecem pessoas interessadas no vinho mas com um conhecimento muito reduzido. Que cursos ou livros recomendas fazer e ler para se adquirir não só conhecimento mas acima de tudo cimentar o gosto por este néctar dos deuses? 

- Não sou o homem ideal para ajudar nesta questão. O que sei sobre vinhos, sei por debate, por prova, tentativa-erro e conhecimento conseguido através desta profissão. Graças aos meus chefs, colegas e clientes. Até mesmo aos fornecedores que me foram acompanhando ao longo dos anos. Aprendi sobre vinhos aquilo que o vinho me ensinou. Por isso, mais do que longas leituras ou vastos cursos, que não deixam de ser essenciais para um conhecimento aprofundado e correto, recomendo visitas a todas as provas de vinho possíveis e imaginárias assim como as perguntas e observações mais estapafúrdias possíveis junto de escanções, chefs e outros mestres que já abriram mais garrafas do que o próprio Baco. Façam-me só um favor: a ler, comecem pelos livros e escritores portugueses. Pelos nossos guias anuais, nomeadamente. Primeiro, conhecer o que se faz cá dentro. Depois, passar lá para fora. Há muito que saber e descobrir, e a gestão de informação não pode nunca intrometer-se na descoberta pelo que é realmente bom.


7 – Vamos às perguntas de resposta rápida: 

- Qual o teu vinho nacional favorito e com o que é que o acompanhas? 

- O branco Quinta de Lemos - Dona Paulette, Encruzado, de 2016. A experimentar com uma sopa de míscaros (em homenagem à região) 

- Qual o teu vinho internacional favorito e com o que é que o acompanhas? 

- O branco austríaco Alzinger Durnsteiner, Riesling, de 2017. Riqueza e secura ótimas para um arroz de lingueirão. 

- Qual a tua região vínica nacional favorita e porque? 

- Por esta altura já se percebeu que é o Dão. É onde reconheço o maior potencial de crescimento a nível de qualidade e variedade. Produz-se em montanha, vale, “meia altitude” e o resultado é sempre um reflexo do que o terroir e a natureza nos trazem naquele ano. São vinhos com um (mau) feitio muito próprio e que só querem ser degustados e percebidos. Fazem-me lembrar o mais interessante do ser humano. 

- Que vinho bebeste e que infelizmente já não voltarás a beber? 

- Um bom vinho é aquele que vale a pena ser bebido junto de boa companhia. Um mau vinho é aquele que nem sozinho sou capaz de beber. E há alguns. 


8 – Para terminar pedimos-te que nos indiques quais são os vinhos que temos de ter sempre em casa nos seguintes escalões de preço: 

Até 5€: Encostas do Côa, um tinto bem apetecível da Beira Interior 

Até 10€: O Antão Vaz da Herdade Grande, um monocasta branco que melhor expressa o que o Alentejo tem de fresco e fascinante 

Até 25€: Equinócio. Mais uma vez branco, mais uma vez alentejano. Um trabalho biológico, com diversas vinhas velhas, do ex-bailarino, João Afonso 

Até 50€: O Ribeiro Santo ET, do Carlos Lucas. O pináculo do Dão. E mais não digo.